A neurociência do vício [PARTE I]

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Ao abordar os Transtornos por Uso de Substâncias (SUDs), uma preocupação significativa de saúde pública, torna-se importante explorar a neurociência do vício e traduzir essas percepções para a prática clínica. Essa abordagem é crucial, pois os transtornos por uso de substâncias estão profundamente arraigados no impulso biológico fundamental de buscar prazer e evitar danos.

Este artigo examina a perspectiva neurocientífica de como substâncias como álcool, maconha e outras influenciam o sistema de recompensa do cérebro, desencadeando uma cascata de neuroadaptações que contribuem para o desenvolvimento da dependência.
Embora nos concentremos na dependência de substâncias neste artigo, os princípios se aplicam a outros transtornos de dependência, como jogo patológico e transtorno de dependência da Internet.


NEUROCIÊNCIA DO PRAZER E DA DOR
Como todas as entidades conscientes, os seres humanos evoluíram dentro de sua estrutura psicológica para gravitar inerentemente em direção a estímulos positivos e evitar os negativos, uma tendência profundamente estruturada para evitar a dor e buscar o prazer.

Essa busca do prazer, instintiva e hereditária, alinha-se com o princípio do prazer de Freud, uma pedra angular da teoria psicanalítica.
O princípio do prazer postula que o impulso humano fundamental para buscar o prazer e evitar a dor é uma força inconsciente que influencia persistentemente o comportamento. Freud afirmou que esse princípio opera durante toda a vida de um indivíduo, direcionando sutilmente as ações e moldando as experiências subjetivas.


Esse impulso para o prazer é considerado um motivador primário no desenvolvimento do comportamento humano, exercendo uma influência significativa nas escolhas e ações dos indivíduos em busca da satisfação hedônica.

Esse comportamento adaptativo, embora fundamental para a sobrevivência, também predispõe os indivíduos ao risco de dependência. Em todas as espécies, a resposta a estímulos recompensadores (como comida e *****o) e a estímulos aversivos (como dor e ameaças) é notavelmente conservada.

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Em termos de dinâmica de dor e recompensa, o princípio do prazer se alinha à teoria do processo adversário (OPT) da emoção. Essa teoria sugere que o tom hedônico resulta de processos de recompensa e aversão opostos em termos valorativos que regulam a homeostase emocional e motivacional. De acordo com a OPT, a ativação repetida de um processo pode levar à sua atenuação e à intensificação simultânea do processo oponente.

Esse conceito é fundamental para o modelo neurobiológico da dependência proposto por Koob e colegas, que ressalta a intrincada interação entre os sistemas de recompensa e estresse no cérebro, que abordaremos mais adiante.

O modelo sugere a dependência como um distúrbio da homeostase hedônica, em que a busca crônica do prazer por meio do uso de substâncias resulta, paradoxalmente, em aumento do estresse e diminuição da sensibilidade à recompensa. Essa desregulação alimenta o comportamento compulsivo de busca de drogas e um ciclo de dependência desafiador, mediado pelas vias de recompensa do cérebro, incluindo os sistemas de neurotransmissores de dopamina. Essas vias, alteradas por substâncias de abuso, levam à busca excessiva do prazer e à negligência dos possíveis danos. A inovação humana levou à extração e ao refinamento de substâncias que são mais atraentes do que as recompensas naturais.


Bebidas alcoólicas de alto teor alcoólico, cigarros e sistemas tecnologicamente avançados de distribuição de drogas, como seringas e dispositivos de vaporização, fornecem estímulos potentes que podem dominar o sistema de recompensa do cérebro.

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Além disso, a química moderna introduziu substâncias psicoativas novas e altamente potentes, incluindo opioides sintéticos e canabinoides, que podem influenciar as vias de recompensa de forma mais robusta do que nunca, aumentando significativamente o risco de dependência.
As substâncias comuns que levam à dependência de drogas incluem álcool, tabaco, cafeína, maconha, metanfetamina, heroína e cocaína.

A disponibilidade de drogas altamente viciantes, combinada com determinados fatores ambientais (como estresse e influência dos colegas) e vulnerabilidades individuais (incluindo condições de saúde mental, dor crônica, predisposição genética, idade e *****o), afeta significativamente a probabilidade de experimentação de substâncias e o desenvolvimento de SUDs.


TERMOS E DEFINIÇÕES
Várias definições de transtornos relacionados a substâncias evoluíram, refletindo os avanços em nossa compreensão da dependência e de suas complexidades. A dependência de substâncias, comumente conhecida como dependência de drogas, é um distúrbio recidivante crônico caracterizado pela busca compulsiva de drogas, pela perda de controle na administração da ingestão e pelos sintomas de abstinência após a cessação.

Classificada como uma doença crônica, a dependência de drogas afeta uma parcela significativa da população. Ela está associada a inúmeros problemas de saúde secundários, desafios sociais e declínio da ética no trabalho, todos com custos sociais substanciais.

O National Institute on Drug ***** (NIDA) descreve a dependência como...

De uma perspectiva diagnóstica, o termo vício agora é englobado pelo termo transtornos por uso de substâncias. As classificações de abuso e dependência do DSM-IV foram planejadas para serem síndromes clínicas relacionadas, porém distintas.

O abuso foi definido como um padrão mal-adaptativo de uso que leva a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativo em um período de 12 meses. A dependência foi definida como o uso contínuo da substância, apesar do prejuízo comportamental ou da angústia no mesmo período de 12 meses. Em 2013, o DSM-5 combinou o que antes era conceituado como dois transtornos separados e hierárquicos (abuso e dependência de substâncias) em uma única construção, definindo os transtornos por uso de substâncias em uma faixa de leve a moderado a grave, com a gravidade da dependência dependendo de quantos dos critérios estabelecidos se aplicam.


O DSM-5 descreve o Transtorno por Uso de Substâncias (SUD) como um transtorno neuropsiquiátrico crônico recidivante com três características principais .
  • Busca e consumo compulsivos de drogas
  • Perda de controle e desejo de limitar a ingestão
  • Surgimento de estados emocionais negativos (por exemplo, disforia, ansiedade e irritabilidade) e estresse
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Um padrão problemático de uso de substâncias que leva a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativo, conforme manifestado por pelo menos dois dos itens a seguir, ocorrendo em um período de 12 meses.
  1. A substância é frequentemente consumida em quantidades maiores ou por um período mais longo do que o pretendido.
  2. Há um desejo persistente ou esforços infrutíferos para reduzir ou controlar o uso da substância.
  3. Grande parte do tempo é gasto em atividades necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos.
  4. Ânsia, ou um forte desejo ou impulso de usar a substância.
  5. Uso recorrente da substância que resulta na incapacidade de cumprir obrigações importantes no trabalho, na escola ou em casa.
  6. Uso contínuo da substância apesar de ter problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelos efeitos da substância.
  7. Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes são abandonadas ou reduzidas devido ao uso da substância.
  8. Uso recorrente da substância em situações em que ela é fisicamente perigosa.
  9. O uso da substância é continuado apesar do conhecimento de que há um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que provavelmente foi causado ou exacerbado pela substância.
  10. Tolerância, conforme definida por um dos seguintes aspectos:
    - necessidade de quantidades acentuadamente maiores da substância para atingir a intoxicação ou o efeito desejado.
    - efeito acentuadamente reduzido com o uso contínuo da mesma quantidade da substância.
  11. Retirada, manifestada por uma das seguintes situações:
    - a síndrome de retirada característica da substância.
    - a substância (ou uma substância intimamente relacionada) é tomada para aliviar ou evitar os sintomas de retirada.
DEPENDÊNCIA NEUROFARMACOLOGIA
Para entender os mecanismos subjacentes à dependência, é essencial explorar o conceito da cascata de recompensas, pois a dependência, fundamentalmente um comportamento condicionado, depende do processo de consolidação da recompensa. Sem o reforço proporcionado pelas recompensas, os comportamentos aprendidos que caracterizam a dependência não se consolidariam. A compreensão neurocientífica da dependência é complexa, sendo a Cascata de Recompensas um componente central.
A cascata de recompensas
A dopamina (DA) é fundamental para os mecanismos de recompensa desencadeados pelas drogas de abuso, pois foi demonstrado que todas as substâncias conhecidas por seu potencial viciante aumentam os níveis de DA no cérebro.

A via mesolímbica da dopamina, que se estende da área tegmental ventral (VTA) do mesencéfalo até as regiões do prosencéfalo, como o Nucleus Accumbens (NAc), a amígdala e o córtex pré-frontal medial (mPFC), é o componente crucial do sistema de recompensa e reforço do cérebro.
Essas substâncias influenciam inicialmente os neurônios DA na área tegmental ventral (VTA). O impacto subsequente dessa interação é a liberação de DA no núcleo accumbens (NAc), uma região central do sistema de recompensa do cérebro.

A elevação da DA por essas drogas não é uniforme, mas varia de acordo com seus alvos moleculares e os efeitos farmacológicos específicos que elas proporcionam. O uso repetido de drogas que causam dependência leva a neuroadaptações significativas em vários sistemas de neurotransmissores. Os sistemas glutamatérgico, GABAérgico, opioidérgico, endocanabinoide, colinérgico, serotoninérgico e noradrenérgico sofrem alterações que influenciam as vias afetivas e hedônicas do cérebro e seus circuitos de resposta aversiva.

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Sistema opioide endógeno e seus efeitos
  • Modula o sistema DA mesolímbico, atribuindo valores hedônicos às recompensas e auxiliando na tomada de decisões.
  • Os opiáceos aumentam a DA indiretamente, inibindo os interneurônios GABAérgicos na VTA.
  • Os receptores opioides Mu (MOR) nos neurônios do NAc estão ligados aos efeitos recompensadores dos opioides e à analgesia.
  • Os receptores opioides delta (DOR) estão envolvidos na analgesia e na ansiólise, e os receptores opioides kappa (KOR) estão associados a respostas disfóricas associadas à dependência.
A interação do sistema canabinoide endógeno (ECS)
  • Modula os sistemas de neurotransmissores, como GABA, glutamato e DA na via mesolímbica.
  • A ativação do receptor CB1 nas aferências glutamatérgicas corticais inibe a liberação de DA no NAc, afetando os comportamentos de recompensa.
  • Os canabinoides agem de forma diferente nos terminais GABA e Glu devido a variações nas proporções entre o receptor CB1 e a vesícula.
  • Tanto a ativação do CB1 quanto do MOR nos neurônios GABA pode estimular a liberação de DA ao desinibir a ACh, enquanto a ativação nos interneurônios ACh pode diminuir os níveis de DA no accumbens.
  • Os canabinoides, como o 2-arquidonoilglicerol (2-AG), podem desinibir os neurônios GABA-A da substância negra, levando a um aumento da DA.
Glutamato e GABA
  • A atividade dos neurônios DA é regulada por entradas glutamatérgicas (excitatórias) e GABAérgicas (inibitórias) locais e de longo alcance de várias regiões cerebrais, incluindo o córtex pré-frontal e orbitofrontal e o núcleo tegmental rostromedial.
  • As entradas glutamatérgicas para os neurônios dopaminérgicos (DA) na área tegmental ventral (VTA) e os neurônios espinhosos médios (MSNs) no núcleo accumbens (NAc) desempenham um papel nas adaptações comportamentais associadas à sensibilidade à recompensa e à formação de hábitos, características da dependência.
  • O glutamato excitatório estimula os receptores NMDA no interneurônio, resultando na liberação de GABA.
  • O GABA, por sua vez, inibe a liberação de dopamina da via mesolímbica. Assim, a via glutamatérgica atua como uma interrupção na via mesolímbica da dopamina.
  • O sistema glutamatérgico desempenha um papel essencial no aprendizado por meio de vias dependentes de NMDA, reforçando essencialmente as associações aprendidas entre o uso de drogas e o reforço positivo.
  • Ao mesmo tempo, o sistema GABAérgico inibe a transmissão do potencial de ação, proporcionando um equilíbrio modulatório que pode ser interrompido por substâncias que causam dependência.
  • Essa interação complexa é fundamental para nossa compreensão mais ampla da dependência e será explorada em mais detalhes posteriormente neste artigo.
  • As entradas neuromoduladoras, como a norepinefrina, a serotonina, a acetilcolina, os neuropeptídeos (oxitocina, neurotensina, orexina) e os hormônios (insulina, leptina) também influenciam a atividade dos neurônios DA.
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PAPEL DA DOPAMINA NO APRENDIZADO, NO COMPORTAMENTO E NA DEPENDÊNCIA
A dopamina (DA) é um dos neurotransmissores mais antigos e é fundamental para os fenômenos de dependência, influenciando o comportamento e a cognição. No cérebro dos mamíferos, a dopamina é responsável por 80% do conteúdo de catecolaminas, o que significa que ela é o neurotransmissor dominante.

A presença e a função da dopamina são incrivelmente conservadas em todo o reino animal, o que indica seu papel fundamental nos processos vitais.
A jornada evolutiva da dopamina começou há cerca de 600 milhões de anos, correlacionando-se com o surgimento da motilidade em organismos multicelulares. O projeto arquitetônico dos gânglios basais dos vertebrados é notável. Ele é caracterizado por vias de saída duplas que contrastam com a via direta singular encontrada em espécies mais simples com sistemas nervosos menos complexos.

O surgimento de uma via secundária ou indireta em vertebrados significa um avanço evolutivo significativo. Essa via indireta é essencial para a seleção de resposta precisa e diferenciada para processos cognitivos superiores. Acredita-se que essa evolução da via indireta dos gânglios basais seja fundamental para a cognição sofisticada observada nos mamíferos, inclusive nos seres humanos, refletindo a complexidade do desenvolvimento neural ao longo da história evolutiva.


O axioma "Pensar é se mover" ressalta o papel fundamental da dopamina na iniciação e no controle do movimento.


Organização estrutural dos neurônios DA
 
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